domingo, 30 de agosto de 2009

VINHO E SANGUE

Num desses domingos de inverno, na missa noturna, numa paróquia que prefiro manter o nome em segredo para preservar o anonimato de seus fiéis, assisti a uma cena memorável. O sacerdote cumprindo costume antigo, mas já não tão em uso, ao dar a comunhão aos fiéis, ofereceu-lhes a partícula do corpo de Cristo e logo em seguida um gole do sangue de cristo que estava no cálice. Fez-se uma fila para que os ministros da comunhão, encarregados de distribuir aos fiéis a eucaristia partilhassem do corpo e sangue de Jesus ali transubstanciado. Todos comungaram até mesmo o pequeno coroinha. O inusitado foi que ao final da fila estava outro coroinha já adolescente, que ao tocar a boca naquele líquido parou por algum tempo com o cálice à boca, ficou imobilizado como que em êxtase, não pelo vinho que ali houvera, mas pelo contato com o maravilhoso, com o Cristo em pessoa.

Vi a agonia de muitos fiéis com a cena e a preocupação com o fato de que ele estava diante de todos bebendo todo o vinho. Que vinho? Era para ser o sangue de Jesus! Ajoelhamo-nos todos diante do mistério de nossa fé momentos antes, e agora, estava-se a acreditar que tudo não passara de uma representação. Há uma grande distancia, por um lado em aceitar que a hóstia e o vinho são signos que simbolizam o corpo e o sangue e por outro, crer no impossível, que de fato, ali está Jesus.

A cena do jovem coroinha me emocionou, pois ele tomado pelo sangue, não conseguia mais se apartar dele. Pensei comigo, justo num momento em que a Igreja Católica está trabalhando o tema do chamado vocacional, vi diante dos meus olhos um fenômeno de arrebatamento, pois que o garoto não se deu conta de que toda uma assembléia o observava e inebriado cometia diante de todos um ato incomum. Alguns preferirão interpretar a cena como um momento de atração pelo espírito do vinho, como diziam os mais velhos,mas esta forma de ver a coisa, retira dela a poesia necessária à vida espiritual.

Os símbolos de transformação vivos na linhas e entrelinhas do missal romano nos leva à beira da fronteira que nos separa dos grandes mistérios da vida e da morte. Para ir além deste limite é necessário a coragem de ver com o coração. Prefiro imaginar e aceitar que verdadeiramente ele foi tomado de entusiasmo pela presença real de Jesus naquele cálice. Não permitir o beneplácito de tal visão é negar que podemos em algum momento, fora das nossas idiossincracias cotidianas, alcançar qualquer contato com o divino.

Não sou teólogo e posso escrever sem o medo dos limites que a conveniência exigiria em tais circunstâncias. Posso dizer que às vezes, nas ocasiões mais inusitadas, somos colocados diante de acontecimentos, quase banais, quase desvios dos comportamentos aceitáveis em ocasiões cujas liturgias já estão codificadas, mas que nos tocam as águas do lago de nossa alma, ondulando e ativando a nossa percepção para outras hiperrealidades paralelas ao real comum. Acho que foi isso que aconteceu naquele domingo.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

TROVÕES

Quando chove em João Pessoa ficamos esperando o inusitado. Um amigo que pilota aviões me disse que a nossa cidade é imprevisível, como um dado jogado no tabuleiro de um cassino, não há como ter certeza de como se comportará o clima. Ontem, à noite, por exemplo, caiam do céu umas tirinhas bem fininhas e frias d’água e de repente, São Pedro ficou irascível e despejou umas trovoadas que fizeram tremer a minha escrivaninha. Foi uma batida tão forte que doeu na pele, os cães ladraram e a gatinha persa correu e pulou sobre o meu colo e não houve palavra que a convencesse de sair. Ficou lá, pois não gosto de contrariar felinos amedrontados, basta o que aconteceu com um casal de atores amigos meus que resolveram afrontar de algum modo a suscetibilidade desses animais, foram quase estripados pelas unhas amoladas do bichano.

A chuva caiu como uma tromba d’água. As pobres telhas sentiram o furor da natureza. Nesta hora o melhor que há é ficar na cama ouvindo a melodia monótona dos pingos percutindo no telhado. Depois de alguma negociação com camille, a gata, fui até a janela para ver as biqueiras grossas como uma cachoeira. Desejei tomar banho de chuva, mas o frio intenso fez-me adiar o plano, para qualquer dia em horário mais conveniente.

Uma amiga me disse que nestas horas o melhor é ficar debaixo do cobertor bem agarradinho. Por enquanto, tenho que me contentar apenas com o cobertor que herdei de uma namorada. Os trovões continuaram cada vez mais fortes. Nestas horas o nosso espírito fica filosófico e começamos a pensar nas razões da vida, na metafísica, e na física mesmo. Os medos primários ressurgem, voltamos à idade das cavernas e não há conhecimento científico que nos assegure que aqueles raios não estão procurando deliberadamente nos acertar.

Aprendi o truque de contar, ao ritmo dos segundos, quanto tempo dura do relâmpago até o estrondo; multiplica-se por 300 e temos a distância da tempestade até nós. O som caminha à velocidade de 300 metros por segundo. À medida que a contagem aumenta temos a certeza de que o vendaval se distancia. É um recurso que nos ajuda a ter a ilusão de que estamos no controle da situação.

Fiquei na cama olhando através de uma telha de vidro que há no meu quarto. Gosto de olhar para estas telhas que me revelam tantas coisas bonitas e me permitem ter a sensação de que adormeço no campo olhando para o firmamento. Ontem, porém, era o pavor infantil que se encontrava com o adulto racionalista, um se amedrontava e o outro procurava as explicações. A cada descarga de eletricidade atmosférica um mundo de sensações e pensamentos se misturava indo de trás para frente no tempo, em voltas sucessivas.

Quando acordei na manhã seguinte tinha aquela impressão de que havia sonhado, é que naqueles momentos a nossa imaginação inventa tantas estórias que depois fica difícil desatar os laços entre a fábula e a realidade. Dizem os especialistas que lembrar é o mesmo que imaginar.