terça-feira, 16 de agosto de 2011

BENZEDURAS AMOROSAS DE LÚCIO LINS


Faz alguns anos, no conhecido Bar do Baiano no bairro dos bancários, um sábado. Lá estava como de costume;  um grupo de artistas  que faziam daquele lugar  um ponto de encontro. Eu havia ido lá com o amigo Tarcísio Pereira para  comer um arrumadinho, e compartilhar da conversas e das músicas sempre presentes através do talento de muitos de nossos melhores instrumentistas e compositores.
Naquela ocasião, depois de umas tantas idas vindas de tantos assuntos, entre literatura, teatro, música, cinema, arranchou-se em nossa mesa o poeta Lúcio Lins, sempre com um cigarro na boca e vez outra bebendo uma dose,  perguntou-me se estava solteiro, ao que respondi que sim.  Ele então pegou uma caneta e um dos guardanapos que estava sobre a mesa e escreveu os poemas  que comento abaixo.
Disse-se que seria um meio infalível de conseguir um amor quase instantâneo. E explicou-me que deveria aproximar-me do ouvido da mulher pretendida e dizer:  “Tu sabes de mim, / de todos os meus sinais”.
Então eu deveria dar uma pausa, respirar com tristeza e dizer: “Sabes dos meus ais”
 Ele explicou-me o significado, esclarecendo  que as mulheres têm no homem um ente hermético que não pode ser decifrado; então, a melhor forma de começar a conquistar uma mulher é garantir-lhe que você não tem segredos, que todos os seus segredos estão colocados diante dela. Continuou declamando:  “E muito mais /  tu sabes de mim”.
Disse Lúcio  que ela ficaria um pouco atônita. Então deu uma tragada naquele cigarro terrível e continuou: “Mas / pouco sabes de mim / Quando eu sou só / Quando eu sou só coração”.
Neste instante entre a algaravia que tomava conta do ambiente por causa de alguma celeuma cultural surgida entre outras mesas aproximou-se mais de meu ouvido;  disse-me que somente será feliz numa conquista o homem que se colocasse como um ser perdido, sozinho, pois mulher alguma havia de gostar de alguém que estava sendo cortejado por inúmeras outras.
Então continuou, quando ela lhe olhar com aquele olhar brilhante, diga: “E o coração fica louco./ Ora bate muito / Ora bate pouco / Bate à porta do peito / Tarde da noite / Tarde demais / Não tem  mais jeito”.
Lúcio fez uma pausa respirou o cigarro e alertou que a mulher ficará com enlevo daquele homem sozinho e desprotegido e aflorando o seu lado maternal o olhará com fineza e inconfundível ternura. Mas ainda ficará na estreita, pois se acostumou que os homens são em sua maioria lobos em pele de cordeiro, e que por vezes isto faz parte de sua natureza inconstante. O poeta respirou fundo e terminou a escrita dos versos: “O coração / Não tem mais sentimento / E o meu coração / Não tem mais coração”.
Assinou o poema e levantou-se. Disse-me que este poema era como benzedura de velha rezadeira do sertão, daquelas que nunca falham para afastar o mau olhado. Concluí então que aquela deveria ser uma benzedura de bom olhado, um poema miraculoso que poderia trazer para perto de quem o pronunciasse a mulher amada.
Lúcio voltou a minha mesa e disse:”  Everaldo se ficar só no poema, pode ser que não aconteça nada então você tem que beijá-la. Faça isto e diga este outro poema”.
“Beijar teus lábios / Todos os lábios / Lábio por lábio / até saber teu labirinto”
“Então a beije sem autorização;  se ela não ficar contigo, pelo menos você não levará uma tapa na cara.”Finalizou Lúcio e se foi.
Embrulhei o poema e guardei-o até que fazendo uma limpeza em minha biblioteca, folheando o livro de Tarcísio Pereira “Agonia na Tumba”, eu reencontrei, hoje que o poeta já se foi de nosso convívio. Não encontrei estes poemas  em outros livros dele. Então para mim este é um livro especial, escrito num guardanapo, frente e verso com os poemas de amor mais belos da língua portuguesa. A poesia em Lúcio era algo que brotava de si naturalmente, ele trabalhava dentro de seu mundo  interior e era capaz de conversar como se participasse de um desafio poético numa simples conversa sobre assuntos triviais.
Este poema de efeitos sobrenaturais, que o próprio poeta fazia relação com as evocações mágicas, retoma esta idéia do poeta como aquele que manipula forças além da compreensão, e também a crença de que as palavras somente pela sua pronuncia tem algum poder.
Os dois poemas são interdependentes  também, um primeiro que faz uma investida sobre os aspectos mais subjetivos como tentando preparar os caminhos da emoção e um segundo que faz da ação a sua relação de existência. No segundo poema será necessário dizê-lo e agir .  Um poema total que sai do papel e se torna algo real durante e após o beijo.


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