domingo, 29 de março de 2020

UMA MULHER SOBRE FILIPEIA

Numa época de isolamento social vemos que a libido explode nas redes sociais de uma forma natural construindo um erotismo de resistência. Temos que lembrar que a internet foi criada como um instrumento de sobrevivência a uma possível guerra nuclear entre os Estados Unidos da América do Norte e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas nos tempos da guerra fria. De fato, o que temos agora é uma guerra, e aquele instrumento terminou sendo o grande meio de luta pela vida. Mais uma vez o inimigo não é mais uma tribo vizinha ou um grupo de países contra outro, mas um microscópico vírus capaz de atacar as economias da maiores potências econômicas e militares do planeta.Em outros tempos já foi um asteroide.

Nestes últimos dias encontrei no aplicativo Instagram uma foto inusitada que foi postada pela atriz paraibana Vilma Cazé. A Paraíba é festejada como uma bela mulher. Há um poder feminino no ar quando se fala da Paraíba. Um corpo feminino sobre  Filipeia(um dos primeiros nomes da cidade) simbolizando a força das mulheres, e também denunciando  o grande número de violências que pairam sobre o feminino no mundo e também aqui.

Na foto ela está nua,no alpendre de seu apartamento, em um dos edifícios mais altos do centro de João Pessoa; na sua nudez o seu rosto difuso por uma sombra, contrasta com a luminosidade de sua vagina, um pouco depilada, mais ainda com uma linha de pelos pubianos. Tudo isto pareceria tão somente uma descrição de erotismo vulgar, se ao fundo não estivesse  algo extremamente simbólico para esta cidade. Imaginem que este corpo belo de mulher tem ao fundo, seguindo a linha de seu coração, o marco fundador de 5 de agosto de 1585 e a Rua General Osório, uma das mais antigas, vindo encontrar o seu ventre. Na linha do horizonte vemos o rio Sanhauá e os traços da cidade antiga.

Naquela imagem feminina, na foto de autorretrato(selfie), vemos a catedral metropolitana de Nossa Senhora das Neves e a Loja Maçônica Branca Dias. Fiquei observando como o feminino se ajunta naquela alegoria, entre o sagrado e o profano, pelos caminhos de ruas vazias.

Dizem algumas lendas antigas sobre a origem do mundo que antes de tudo existir, quando nada havia, uma mulher deu a luz a si mesma; depois pariu os seus filhos, que construíram os universos.

É interessante notar como a imagem, que foi com certeza, tomada de forma intuitiva,  guarde em si um poder simbólico tão poderoso. É uma imagem que resume bem esta coisa que é a Paraíba.

É uma imagem que evoca um erotismo de resistência,  em contraposição às forças destrutivas da morte. Fazendo a transposição da mitologia grega para os nosso dias, temos os dois grandes princípios: o de vida, representado pela mulher parindo a cidade e o da morte, ora representados pelos loucos perversos que fazem carreatas nas ruas para promover o fim do único remédio contra a contaminação pelo Corona Vírus, assim promovendo e desejando a morte.

Temos que crer que a grande maioria quer a vida. Há por outro lado forças minoritárias, mas poderosas que desejam a morte. Hoje podemos entender como agiam os “cidadãos de bem” da Alemanha nazista massacrando o povo judeu.

Dentro desta luta terrível, da vida contra a morte, surgem os artistas, que de formas inusitadas propõe releituras do real.

Eros, o deus grego do amor é associado às forças vitais, as forças de criação e construção do mundo, enquanto que Tânatos é a representação da morte. Esta explosão da libido são como bolhas da fervura. É possível verificar isso de forma ampla, a principio parece como algo ligado a um erotismo superficial, mas há um novo padrão. Esta imagem mostra como está o clima subjetivo da sociedade que teve que recolher Eros sob a ameaça de Tânatos.

O Exercício da quarentena lembrou-me das aulas de Psicanálise no Epsi sobre o luto, porque vivemos de fato a morte de um modelo de sociedade, não somente  do ponto de vista econômico, mas de relação humana. Toda esta geração está vendo e sentindo na pele morrer a “sociedade do sucesso individual”. Nós podemos também ver nas iniciativas "online" de eventos esta mesma força erótica, não no sentido vulgar da sexualidade, preparando-se para borbulhar. No entanto, esta ebulição tem um sentido de reação. Ela é uma negação do que está ocorrendo mesmo, que é a morte de um mundo. Daí a tentativa de fazer as mesmas coisas, mas os paradigmas já caíram e esta será uma percepção lenta. Nós também estamos vendo o desespero de pessoas de uma elite por vida social privilegiada, lutando para manter seu status quo numa luta para que o antigo mundo não acabe.

Algo muito forte aconteceu e tudo agora passará pela experiência pessoal de uma alma coletiva.

Aquela foto surgiu em um momento de quarentena, quando todos estavam, e ainda estão, isolados em suas casas procurando diminuir o poder de contágio do vírus Convid-19. A atriz em seu banho de sol em seu lar, resolveu fazer uma foto e teve a felicidade de  construir uma imagem emblemática, que anuncia que aquele mundo que conhecíamos não existirá mais, mesmo que se tente, pois algo muito grave aconteceu dentro de nossos espíritos.

Não há mais como negar o grande estrago que foi produzido pela mentiras que se tornaram forças propulsaras da sociedade. A verdade que ficou é a do belo corpo nu, sem medo, sobre o ponto fundador, como que anunciando que termos que nos reinventar como pessoas.

Sobra-nos a imagem da mulher que dá a luz a cidade, que é o lugar da civilização por excelência, como nos versos de Genival Macedo: “Paraíba hospitaleira,Morena brasileira,Do meu coração!” Após a peste vem o renascimento como já aconteceu na Europa medieval. Temos que manter o sonho, e aquela foto é um símbolo desta esperança e renascimento.

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